Em tempos de imagens instantâneas em celulares, dedique um pouco do seu tempo para fotografar o olfato e colecionar os cheiros da infância. Comece a capturar os códigos do seu mundo. Faça um álbum com a respiração. Antes de clicar, feche os olhos e aperte o pulmão – ele vai disparar o batimento e revelar sua vida.
“Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei”
Manoel de Barros, em Ensaios Fotográficos
“Como conhecer as coisas senão sendo-as?”
Jorge de Lima, em Invenção de Orfeu
Você já pensou em fotografar o vento? E que tal fotografar o cheiro do vento?
Suba na árvore de sua infância, durante a época dos frutos. Permaneça sentado no galho, esqueça que sujará a roupa, deixe a luz entrar pelas frestas da copa, a luz vai se desvencilhar das sombras para encontrá-lo. A sensação é que está no mirante de uma igreja, perto de um sino. Um esconderijo santo, sábio. É possível localizar um por um dos pássaros pelos piares. Um está à esquerda, outro à direita. Pode apanhá-los com os ouvidos. Retire uma fruta da paciência das folhas. Não mastigue ainda, alise o veludo da casca no rosto, desfaça o pólen doce pelo lustro da cor, repare o tempo que a fruta demorou até aquele instante.
Feche os olhos, INSPIRE, você fotografou o cheiro do vento.
Pense nos cabelos de sua mulher ao sair do banho, pense devagar como se o cheiro estivesse recém acordando, como se ela estivesse avançando em sua direção, passando perto de você, às vésperas de abraçá-lo. No momento em que você toca sua nuca com a respiração, congele a imagem. Busque guardar o olfato com todas as suas fraquezas.
Feche os olhos, INSPIRE, você fotografou o cheiro do quarto.
Você já pensou em fotografar o cheiro da chuva? Veja as árvores dançando, os sacos de plástico voando como aviõezinhos malucos, as crianças correndo para casa, os relâmpagos ao fundo como lanternas tremulando no rio e no mar. Pense no som dos primeiros ruídos nas telhas, o som das calhas, o som na grama, o som na roupa, o som no balde, cada objeto produz um som diferente com a água, cada objeto é um instrumento com a água, uma orquestra está tocando só para você.
Feche os olhos, INSPIRE, você fotografou o cheiro da chuva.
Você já pensou em fotografar o cheiro da casa de madeira de sua avó? Ela não vive mais, a residência não existe mais? Não há problema. Tente remar de manhã, na neblina, em algum clube. Entre numa canoa, use sua disposição para avançar. Ao se fixar no meio do percurso, no meio do nada, longe das margens, largue os braços e descanse. Sinta sem medo o balançar das tábuas. Lembre o embalo da cadeira de balanço, não? Como se fossem cócegas em sua testa e orelhas, em suas costas. Alguém está o embalando novamente. Da canoa, virá o perfume do carvalho e o cortejo dos grilos e vaga-lumes.
Feche os olhos, INSPIRE, você fotografou o cheiro da casa da avó.
Você já pensou em fotografar o cheiro de sua mãe? Quando pequeno, onde você ficava quando ela o apresentava aos desconhecidos? Preso nas pernas dela, nas saias, certo? Girando entre a perna esquerda e a direita. Brincava de esconde-esconde, com jeito tímido, enquanto ela pedia: "Fala seu nome, diz oi, diz tchau".
Feche os olhos, lembrará do cheiro dos joelhos dela, INSPIRE, você fotografou o cheiro de sua mãe.
Você já pensou em fotografar o cheiro do seu pai? Pense quando ele levantava você lá em cima, e girava e girava, para mostrar que o amor é movimento. Não tire ainda a fotografia, espere descer, devagar. Ele colocará você de volta ao chão.
Feche os olhos na hora de pousar, lembrará do cheiro dos cotovelos dele, INSPIRE, você fotografou o cheiro de seu pai.
Você já pensou em fotografar o cheiro de seu filho? Qual seria o cheiro dele?
De noite, você está contando uma história. Você observa o livro, ele observa sua boca. Você é o livro que ele quer ler. Ele pede para contar mais, você diz que amanhã continua. No beijo de apagar a luz, o cheiro do livro se mistura ao cheiro do pijama dele que se mistura ao cheiro morno da noite.
Feche os olhos no contato com a pele dele, INSPIRE, você fotografou o cheiro de seu filho.
Você já pensou em fotografar o cheiro de uma carta? De sua letra? O cheiro da lareira? O cheiro do primeiro emprego? O cheiro do primeiro amor? Você já pensou em fotografar o cheiro de sua mulher chegando do trabalho? O cheiro do recreio da escola? O cheiro do bilhete que vem junto das flores? O cheiro dos selos da carta de um amigo? O cheiro do estofado do carro da infância? Você já pensou em fotografar o cheiro da ansiedade? O cheiro da fé? Você já fotografou o cheiro das camisas retiradas do varal, o sol ainda na gola? O cheiro da aventura na mata? O cheiro do acampamento? O cheiro da espuma caindo? O cheiro da rede? O cheiro da varanda? O cheiro dos livros nas gavetas, o cheiro dos livros na estante, o cheiro dos livros na cômoda? O cheiro da comida predileta? O cheiro de domingo? O cheiro do restaurante favorito? O cheiro do sofá? Você já pensou que tudo é um cheiro pedindo para ser guardado.
Feche os olhos, INSPIRE, você fotografou o cheiro do mundo.
FABRÍCIO CARPINEJAR
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